Saúde mental: quando e como o problema chega na agenda

Foto: United Nations/Divulgação

Barbara Panseri, 28 anos, formada em Relações Públicas, mestra em Administração Pública e candidata à vereadora de São Paulo pelo PDT/SP

O que faz com que as pessoas – dentro e fora do governo – se dediquem a alguns temas e não a outros? John Kingdon, cientista político norte-americano estudou a fundo o processo de formulação das agendas nas políticas públicas, e argumentou que um tema só ganha notoriedade e torna-se política de governo quando três requisitos ou janelas se alinham num determinado momento histórico. Primeiramente, a existência de um consenso na opinião pública de que o tema é de fato um problema público e, portanto, precisa de uma solução também pública. Em segundo lugar, é imprescindível que existam soluções para o problema estudadas por técnicos e conhecedores da questão. Por fim, é primordial entender a política por trás do processo de tomada de decisões, dado que os jogos políticos fluem de acordo com uma dinâmica própria, muitas vezes desconhecida pela população. Apoiada nessa teoria, faço aqui um esforço de aplicação à questão da saúde mental em nosso país.

Se por um lado o ano de 2020 já está sendo lembrado como o ano em que a pandemia causada pelo novo coronavírus catalisou diversas crises – de ordem social, sanitária, econômica, política e afetiva–, por outro lado, pode ter colocado algumas questões sociais no centro do debate, como desemprego, desigualdades, orçamento destinado a saúde pública, ciência e pesquisa, entre outras.

Olhando por esse ângulo, a Covid-19 pode nos trazer uma oportunidade: a preocupação coletiva com a saúde mental. Nos últimos 6 meses, foi raro não ouvirmos falar sobre ansiedade ou estresse, aumento dos casos de violência contra a mulher ou formas como lidamos com o luto ou com as incertezas. São podcasts, lives, artigos de opinião, pesquisas, guias e muitas informações que nos chegam diariamente sobre como cuidar de nossa saúde mental durante o período de isolamento social, de quarentena ou de retorno. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) produziu um guia com diretrizes importantíssimas. E assim, cumpre-se o primeiro requisito de Kingdon: uma mudança firme e marcante na opinião pública sobre o problema.

Apesar de o contexto da pandemia ressaltar a necessidade de se discutir a saúde mental da população (estudo divulgado pela UERJ no início de maio com dados levantados em todo o país revelou que casos de ansiedade e estresse mais do que dobraram, enquanto os de depressão tiveram aumento de 90% durante o mês de abril), a ideia de saúde mental como um problema grave e público já poderia estar no centro do debate há mais tempo. Não é de hoje que sabemos que os dados são alarmantes. No ano passado, por exemplo, a OMS divulgou que o Brasil é o país mais ansioso do mundo, com 18,6 milhões de brasileiros convivendo com o transtorno. As razões pelas quais esse tema não ganhou o protagonismo necessário no debate público pode estar na falta de um consenso técnico e/ou em aspectos políticos.

Passamos, então, a analisar a segunda exigência da teoria de Kingdon: a existência de amplo debate entre os especialistas sobre quais são os caminhos, as soluções para endereçar aquele problema. Sobre esse aspecto, com certeza existem fortes discussões postas nos meios especializados. Na nossa história recente, houve forte embate sobre a integração/isolamento do paciente psiquiátrico. Havia quem defendia a necessidade de seguir com um modelo respaldado na internação psiquiátrica e na exclusão daqueles indivíduos com sérios comprometimentos mentais e aqueles que eram completamente contrários à privação de liberdade como única forma de tratamento, já que é um modelo que tira a autonomia do sujeito e rompe vínculos importantes. Esse embate parece ter se acalmado com o fortalecimento e prevalência do Movimento da Reforma Psiquiátrica que resultou na aprovação da Lei nº 10.216/2.001, que trata da proteção dos direitos das pessoas com transtornos mentais e redireciona o modelo de assistência a partir dos direitos humanos, tendo como princípios a inclusão social, autonomia e garantia da cidadania dos usuários e seus familiares. Este marco legal estabeleceu a responsabilidade do Estado no desenvolvimento da política de saúde mental no Brasil, através do fechamento de hospitais psiquiátricos, da criação de uma rede substitutiva, que tem a desinstitucionalização como eixo ético-técnico, e da participação social no acompanhamento de sua implementação.

Contudo, ainda que tenhamos um marco legal e que tenhamos acompanhado diversos avanços na política pública de atenção em saúde mental no Brasil, ainda temos duas questões a se debater como sociedade: uma cultural e uma científica. Sobre o aspecto científico: há quem diga que nós caminhamos cada vez mais rumo à medicalização do comportamento humano e defenda projetos terapêuticos individuais, e há quem acredite que a ciência finalmente vem descobrindo fórmulas químicas que resolvem casos de insônia, depressão ou ansiedade com muita efetividade. Eu acredito que a abordagem alopática não deve ser a única, pois ainda precisamos dela, da mesma forma que precisamos do trabalho terapêutico e psicológico, e o SUS deve oferecer ambas abordagens. Sobre o aspecto cultural, me parece que nós ainda não sabemos lidar com tudo o que remete à loucura, que o exercício de reconstrução histórica desse conceito sob uma ótica mais humana ainda é difícil para muitos de nós. 

A partir do exposto, é possível afirmar que a segunda janela – do campo das soluções – existe e está em intenso debate. Soluções existem, e muitas. Movimentos organizados existem, e muitos. Nos resta agora aprofundar alguns debates para avaliar a pertinência da melhor solução para cada sujeito, para cada comunidade, para cada município. Nos resta avaliar o que podemos melhorar após os avanços conquistados a partir de 2001.

E assim trago o terceiro aspecto observado por Kingdon: a dinâmica política. A Política Nacional de Saúde Mental é uma ação do Governo Federal, coordenada pelo Ministério da Saúde, que compreende as estratégias e diretrizes adotadas pelo país para organizar a assistência às pessoas com necessidades de tratamento e cuidados específicos em saúde mental. Quaisquer modificações nesta política ou em outros instrumentos existentes atualmente exigirá grande esforço dentro do Congresso Nacional e dentro do Ministério da Saúde em um momento em que ambos órgãos e seus representantes estão dedicados ao combate do avanço da pandemia. 

Nesse contexto, arrisco dizer que mudanças significativas aconteceriam apenas se: tivermos um agravamento catastrófico do número de pessoas buscando tratamento em saúde mental dentro do SUS ou se tivermos forte mobilização da sociedade. E ainda sim, dado o momento político que vivemos – a julgar pelo posicionamento do presidente da República em relação ao combate à pandemia – é bastante improvável que essa agenda ganhe alguma centralidade neste mandato.

Seguindo a linha argumentativa, nós temos duas janelas bem alinhadas – o problema reconhecido como tal e diversas propostas de soluções –, mas ainda falta alguma faísca para o quesito vontade política se incendiar. Em seu livro, Kingdon fala sobre o papel do empreendedor político, agente responsável por capitanear a vontade da sociedade e orquestrar o alinhamento das três janelas. Talvez tenhamos três grandes empreendedores políticos que podem nos ajudar a colocar os caminhos e as soluções na mesa de decisão quando o assunto é saúde mental: (a) a sociedade civil organizada, conhecedora da luta antimanicomial e usuária do sistema público de saúde, (b) nossos representantes eleitos sensibilizados com o tema, e (c) os grandes médicos influenciadores, como Dráuzio Varella – e o cito com o único objetivo de ilustrar médicos reconhecidos e ouvidos pela opinião pública. Precisamos de mobilização da sociedade e pressão sobre tais agentes.

Texto publicado por São Paulo São.

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