Sobre Cuba, Ciro e o PDT

Mais uma vez Cuba foi assunto essa semana, depois dos protestos que sacudiram a ilha no último fim de semana, os maiores em décadas. Foi motivo de celeuma também entre a militância pedetista/cirista por conta de um vídeo sobre o tema lançado por Ciro Gomes sobre o assunto. Partindo desse vídeo gostaria de propor uma reflexão sobre o tema e, desde já, abrir uma divergência fraterna com vários companheiros de militância.

Em primeiro lugar, a Revolução Cubana teve uma influência enorme na minha formação. Posso afirmar sem exagero que a minha paixão pelo tema foi um dos grandes responsáveis por eu ter me tornado historiador. Cheguei na faculdade querendo ser um pesquisador do tema, até o momento em que um querido professor me advertiu que se a minha preocupação era com a revolução brasileira, que eu deveria estudar o Brasil e não Cuba. Afinal de contas, lá a revolução já tinha acontecido. Até hoje boa parte da minha biblioteca são de livros dedicados ao tema, e sem dúvida alguma foi um dos assuntos sobre os quais mais li até hoje, ainda que, stricto sensu, eu não seja um especialista no tema. Por fim, foi o lugar mais incrível que já conheci na vida. Dito isso, algumas considerações importantes, primeiro sobre os protestos na ilha e depois sobre o posicionamento do PDT e de Ciro Gomes.

Li certa vez que toda afirmação sobre Cuba é igual mala de contrabandista: tem sempre um fundo falso. Ou seja, é um assunto sempre cheio de meias-verdades, independente do posicionamento político de quem fala. É evidente que o anacrônico bloqueio econômico contra Cuba dificulta e muito a condição do país, mas isso é só parte do problema. É inegável que o sistema estatal que ainda controla a maior parte da economia é extremamente ineficaz e burocrático, algo que o próprio PCC (Partido Comunista Cubano) reconhece. Por outro lado, é evidente que o país tem sim restrições sérias quando se trata de liberdades individuais. É honestidade intelectual reconhecer, mas isso de forma alguma significa corroborar com o discurso hipócrita e intervencionista dos EUA sobre “democracia e liberdade”. Dessa forma, é preciso ter muita cautela para não ser reducionista com as manifestações que lá ocorrem, porque, no fim das contas, os dois lados têm razão.

As manifestações contra as condições difíceis de vida, agravadas pela pandemia são, em princípio, legítimas. Vale citar também a complexa reunificação cambial que vem sendo colocada em prática na ilha, acabando com a dualidade cambial existente desde o início dos anos 1990, que mantinha uma moeda para os cubanos, o CUP, e outra para os turistas, o CUC, pareada ao Dólar e ao Euro. Essa reforma também impactou em cheio a vida cotidiana dos cubanos, com uma pressão inflacionária inevitável. Por outro lado, não é difícil imaginar que existam agitadores infiltrados entre os manifestantes, bancados pela CIA. A desestabilização sempre foi a política preferencial dos EUA em relação a Cuba e a Guerra Híbrida se tornou o carro-chefe dessa política nos últimos anos.

Frente a isso, o que fazer? A meu ver o único posicionamento progressista sensato é o de rechaço a qualquer tipo de intervenção na ilha, em qualquer esfera e grau, e o respeito incondicional à autodeterminação e a soberania do povo cubano para lidar com suas questões internas. E me parece que o vídeo lançado pelo Ciro e que causou tantas críticas por parte da militância pedetista vai justamente nesse sentido, e as críticas foram pelo fato de o líder trabalhista não ter feito uma defesa incondicional do governo cubano, como outrora o PDT já fez.

Algumas questões a se considerar em relação a isso. A primeira delas é o fato de boa parte da esquerda brasileira tratar Cuba como um símbolo, seja de resistência ao imperialismo, seja pelo sucesso dos sistemas de educação e saúde da ilha. De fato, essas coisas são reais, mas como disse lá em cima quando falei em meias verdades, a ilha caribenha não se resume a isso. O problema de considerar o país como um símbolo é tratá-lo feito um objeto de adoração que não deve ser modificado e nem criticado. Se reifica a Revolução Cubana como se esse processo não fosse cheio de contradições e pontos passíveis de crítica. E a Cuba simbólica da esquerda mundial muitas vezes não é o país em que milhões de cubanos vivem cotidianamente, mas o maniqueísmo militante muitas vezes cega para essa obviedade.

O que eu vi quando estive em Cuba foi um povo alegre e vibrante apesar dos perrengues cotidianos de uma economia fragilizada e sem grandes perspectivas. Vi pessoas orgulhosas de seu país e dos avanços sociais da Revolução, ao mesmo tempo que reconheciam a necessidade, por exemplo, de alugar sua casa para turistas pelo fato do salário pago pelo Estado não permitir fechar o mês. Da mesma forma que em Havana vi muitos cubanos ansiosos pelo aprofundamento no reatamento de relações com os EUA, esperançosos que o fim do embargo trouxesse milhares e milhares de turistas dos EUA, para movimentar de vez a economia e seus pequenos negócios. Na cabeça do militante médio de esquerda no Brasil soa quase como sacrilégio um cubano desejar essa aproximação visando aumentar a rentabilidade dos seus negócios, enquanto reconhece e pretende manter as conquistas da Revolução. Mas esse é o retrato de Cuba hoje, muito mais do que os barbudos de Sierra Maestra dos anos 1960.

Dessa forma, e agora voltando para o vídeo do Ciro, me parece que era dessa Cuba real, para além do símbolo, da propaganda e das palavras de ordem, que o líder trabalhista falava. Vi alguns militantes inflamados argumentando que Ciro não estava “respeitando a tradição do PDT” e a figura de Brizola ao não demonstrar apoio incondicional ao governo cubano. Ora, os valores que o PDT defende são bastante claros em nosso programa: defesa dos trabalhadores, dos grupos marginalizados, da soberania nacional e da democracia representativa com base no pluralismo partidário e na garantia dos direitos humanos. Nenhum desses valores foi desrespeitado na fala do nosso líder, muito pelo contrário. Quanto à figura de nosso fundador e grande liderança histórica, acredito que o passado deve ser sim reverenciado e servir de referência, mas nunca ser uma bola de ferro amarrada no pé das lideranças atuais, que as impeça de agir e fazer o partido avançar dentro da conjuntura atual.

Se há 40 anos fazia sentido defender o governo cubano de forma incondicional, talvez hoje não faça. Inclusive é preciso saber mudar e retificar posições para se manter coerente com seus valores históricos, e não tenho dúvida alguma de que nesse caso é exatamente isso o que o PDT fez, por meio do pronunciamento do Ciro. Afinal de contas, se a luta contra o autoritarismo e o imperialismo é uma marca do PDT desde o seu nascimento em 1979, sejamos coerentes em tempo integral. Simples assim.

No mais, reitero: sejamos pelo fim do bloqueio econômico contra Cuba bancado pelos EUA e pela defesa da autodeterminação do povo cubano e sua luta por liberdades individuais e participação política plenas, os respeitando incondicionalmente, seja qual for o caminho escolhido por eles. Enfim, me aperta o coração tudo isso que está acontecendo em Cuba, só espero que as pessoas tão acolhedoras que me receberam lá em 2018 fiquem bem e que em breve eu possa visitá-los novamente, sentindo a brisa do mar que vem do Malecón. E que os companheiros de militância entendam, enfim, que respeitar o passado não significa ficar preso a ele.

Por Vinícius Juberte

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