O ‘fiscalismo’ de Ciro Gomes e seus críticos

Por Daniel S. Kosinski – DISPARADA –  No seu mais recente livro [1], Ciro Gomes apresenta como um dos seus principais argumentos a defesa do equilíbrio fiscal como situação ideal de governo. A julgar por algumas críticas recentes, trata-se, provavelmente, da sua proposição mais incompreendida. Isso porque Ciro vem sendo considerado por alguns um “fiscalista” ou, até mesmo, alguém que pensa em termos de “economia doméstica”.

No primeiro caso, trata-se de uma visão simplista; no segundo, apenas de um equívoco grosseiro. Para quem lê o livro de Ciro honestamente disposto a entendê-lo, fica evidente que o candidato não apresenta nenhuma objeção apriorística à possibilidade, ou mesmo à necessidade, da prática de deficits nas contas públicas em determinadas conjunturas, tampouco a que se emita moeda. Assim, buscando esclarecer o argumento do candidato a esse respeito, parto de uma proposição simples e que subjaz o seu livro: a de que um governo dependente do dinheiro alheio não é capaz de liderar ou financiar um projeto nacional de desenvolvimento. Ao contrário do que alguns desses críticos parecem crer, a questão da administração monetária do desenvolvimento pouco tem de “técnica”. Ela é essencialmente política e está diretamente relacionada com uma prerrogativa fundamental de qualquer Estado nacional contemporâneo, mas que na prática é exercida por raros deles: a soberania monetária.

Para demonstrar esse ponto, recorro à história recente da China, indubitavelmente o mais bem-sucedido caso de desenvolvimento nacional no mundo atual [2]. Aqui, pretendo apenas enumerar alguns fatos capitais na trajetória desse país, sem ter nem o espaço para nem a intenção de discuti-los em profundidade. Tampouco advogo, de maneira alguma, que o Brasil “importe” o “modelo” chinês ou busque emular os seus caminhos. Dadas as nossas características e circunstâncias culturais, históricas, políticas e geopolíticas, isso não apenas seria indesejável como é impossível. O que pretendo, apenas, é tomar o exercício da soberania monetária chinesa nas últimas décadas como ponto de referência para ilustrar a atual situação do Brasil neste quesito e, a partir daí, explicitar o fundamento da posição de Ciro Gomes.

Desde a proclamação da República Popular da China em 1949, os chineses lograram construir um território monetário nacional bem isolado do mundo exterior através de medidas como controles absolutamente rigorosos da conta de capitais e a nacionalização das instituições financeiras. Como resultado, o sistema financeiro chinês não se subordina ao internacional, que desde o pós-Segunda Guerra Mundial é dominado pelo dólar dos Estados Unidos e pelas instituições “internacionais” criadas e controladas por eles (como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional) e, desde o início da onda de “desregulamentação” financeira dos anos 1970 (ou ainda antes, segundo alguns), se encontra cada vez mais “financeirizado”.

A partir dessa realização inicial, ainda sob a liderança de Mao Zedong, o governo chinês vem desfrutando de plena autonomia monetária para investir no desenvolvimento do país. Especialmente desde o início das reformas lideradas por Deng Xiaoping em 1978, é essa liberdade que vem permitindo aos chineses sustentar taxas anuais de investimento elevadíssimas: médias de 36,9% do PIB entre 1982 e 2011 e cerca de 45% a partir de 2003. São investimentos financiados, essencialmente, por um pequeno grupo de bancos estatais, os chamados “big four”, e mais alguns grandes bancos de desenvolvimento [3]. Eles viabilizaram, por exemplo, os “megaprojetos” de infraestrutura como a construção, em poucos anos, da maior malha mundial de ferrovias de alta velocidade; e a migração de centenas de milhões do campo para as cidades, na maior e mais acelerada urbanização já registrada.

Outra façanha realizada pelos chineses, o crédito doméstico ao setor privado foi ampliado de cerca de 50% do PIB em 1978 para quase 160% em 2015. Considerando-se que, de acordo com o Banco Mundial, o PIB chinês em dólares correntes cresceu nada menos que 74 vezes nesse período, temos noção da gigantesca ampliação dos meios monetários promovida pelas autoridades do país. Basicamente, isso significa que, havendo disponibilidade de fatores produtivos, matérias-primas e força de trabalho, o governo chinês vem sendo capaz de viabilizar os recursos financeiros necessários para comandá-los, liderando decisivamente a construção do seu projeto nacional.

Paralelamente a isso, outra face dessa soberania monetária foi construída pelas políticas desenvolvimentistas altamente mercantilistas adotadas desde as reformas de Deng, orientadas para o crescimento contínuo das exportações e a obtenção de saldos positivos no comércio exterior. Sem entrar em detalhes, as exportações chinesas subiram de apenas 9,75 bilhões de dólares em 1978 para 2,34 trilhões em 2014, enquanto o saldo comercial do país evoluiu de um bilhão de dólares negativos para quase 400 bilhões positivos. Para isso, além de outros fatores como políticas industriais e de desenvolvimento tecnológico, o governo chinês controla rigorosamente a taxa de câmbio da moeda nacional (fortemente desvalorizada em termos nominais de menos de dois renmimbis por dólar em 1981 para quase 9 renmimbis em 1994 e mantida relativamente estável entre 6 e 7 desde 2008). Além disso, mantendo os limites rígidos de entrada e de saída de capitais, as autoridades “disciplinam” as iniciativas privadas no país. A obtenção de lucro não é censurada, muito pelo contrário; porém, elas são induzidas a operar de acordo com os objetivos governamentais. Em rigor, um fato que não impediu a China de receber montanhas de investimentos estrangeiros diretos: 140 bilhões de dólares em 2014, contra apenas 800 milhões em 1990.

Dessa forma, as reservas internacionais chinesas cresceram de exíguos 1,6 bilhão de dólares em 1978 para 3,84 trilhões no final de 2014. A China, hoje, é de longe a maior credora global, o que lhe confere autonomia para usar a moeda comandante das relações internacionais de acordo com os seus objetivos. Com isso, os chineses importam os alimentos e as matérias-primas que necessitam; realizam investimentos e aquisições de ativos no exterior; constroem as infraestruturas globais sinocêntricas propostas pela “Nova Rota da Seda”; e financiam gastos emergenciais, como o pacote de investimentos de quase 600 bilhões de dólares lançado em resposta à crise de 2008.

Em rigor, tudo isso é possível apenas porque o Estado chinês não depende de qualquer dinheiro alheio, nem em moeda nacional nem em estrangeira, para financiar os seus objetivos desenvolvimentistas. Se olharmos para as contas públicas chinesas, há, pelo menos, três décadas e meia elas apresentam deficits fiscais quase ininterruptos. Dados do site countryeconomy.com, compilados a partir do Escritório Nacional de Estatísticas da China, mostram que, desde 1986, o único saldo positivo ocorreu em 2007, com exíguos 0,06% do PIB. Nos demais anos, o governo chinês apresentou deficits públicos inferiores a 1 ou 2% anuais; e entre 2 e 3% de 1999 a 2003. Apenas desde 2015 esses deficits cresceram além desses índices, culminando em 6,34% em 2019 e 11,39% em 2020, com as amplas perturbações nas atividades produtivas e os gastos emergenciais decorrentes da pandemia.

Portanto, podemos dizer que, salvo exceções recentes, a China vem apresentando uma trajetória sustentada e de longo prazo de deficits públicos pequenos a moderados. Para os próximos anos, projeções apontam a sua queda de 9,6% em 2021 para 6% em 2026, indicando a intenção das autoridades chinesas em reduzi-los. Apesar disso, é pouco provável que alguém em sã consciência considere os chineses “fiscalistas”. Ademais, a sua “moderação” fiscal não tem impedido, em absoluto, o financiamento do ritmo espetacular de desenvolvimento do país. Pelo contrário: a manutenção das contas públicas sob controle visa exatamente limitar o crescimento do endividamento público com vistas a assegurar, no longo prazo, o exercício pleno da soberania monetária que viabiliza o seu projeto nacional.

Tomando essa trajetória chinesa como referência, o que podemos constatar quanto ao Brasil?

Em rigor, que ao contrário da China, a soberania monetária do Estado brasileiro encontra-se amplamente tolhida em diversas dimensões. Apenas para ficarmos nas principais restrições, operamos com conta de capitais majoritariamente aberta, facilitando todos os tipos de movimentos financeiros. O Banco Central do Brasil (BCB) se encontra, pelo menos desde meados da década de 1990, entregue ao comando de banqueiros egressos de instituições financeiras nacionais e estrangeiras, praticando taxas de juros, em geral, obscenas e francamente favoráveis aos interesses rentistas. Desde 2016, o Governo Federal foi colocado sob o chamado “teto” dos gastos públicos, limitação inédita imposta por um Estado à sua própria soberania monetária que, de tão absurda, na prática não está mais sendo cumprida. Por fim, recentemente, aprovou-se a chamada “autonomia” do BCB, verdadeiro golpe de Estado da “Contrarrevolução Tecnocrática” que visa promover a captura definitiva da autoridade monetária nacional por essa coalizão rentista.

O que tudo isso demonstra é que, na prática, o Estado brasileiro não exerce mais a sua soberania monetária. Hoje temos um sistema financeiro nacional inteiramente periférico e amplamente subordinado ao internacional, dolarizado e “financeirizado”. Se ao contrário de outras épocas, como na “crise da dívida” dos anos 1980, o Estado brasileiro atualmente ostenta posição credora externa líquida em função dos mais de 300 bilhões de dólares em reservas, a dívida pública interna cresceu vigorosamente nesse período, em particular nos últimos seis ou sete anos, aproximando-se de 100% do PIB. Mesmo que esse nível não seja excepcional na comparação internacional, os encargos da dívida brasileira são enormes, muito acima da média de países muito mais endividados como a Itália e o Japão.

Diante disso, nos últimos anos, nossas taxas de investimentos públicos foram as mais baixas em, pelo menos, meio século, e continuam a decrescer. Por que? Porque além da orientação ideológica privatista dos últimos governos, o Estado brasileiro hoje está subordinado aos seus credores e mal possui autonomia monetária para determinar seus gastos correntes, que dirá para investir. Ao contrário do que parecem crer alguns jovens deslumbrados e que aparentam não terem compreendido a Modern Money Theory (MMT), o fato da dívida interna estar denominada em moeda nacional não soluciona magicamente o problema. Se do ponto de vista formal o Estado brasileiro possui a prerrogativa de emitir o meio de liquidação dessa dívida, na prática substantiva não está se mostrando capaz de fazê-lo. Se não controla mais a moeda que, contraditoriamente, ele próprio garante, esse Estado acaba subordinado aos seus credores e aceitando as condições exigidas por eles para “se financiar”. É o que acontece com o Estado brasileiro hoje. Mais uma vez, não temos aqui um problema “técnico”, mas político.

Portanto, é a partir dessas condições absolutamente desfavoráveis que deve ser compreendida a defesa do “equilíbrio fiscal” feita por Ciro Gomes. Claramente, sua proposta de adequação entre arrecadação e gastos governamentais não significa que deficits públicos não devam ser praticados sob nenhuma hipótese ou que moeda não deva jamais ser emitida. O que Ciro afirma, há muito tempo, é que as contas públicas devem ser mantidas em relativa ordem de forma a recuperar a capacidade de investimento do Estado e a sustentá-la ao longo do tempo.

Assim, não há “fiscalismo” na sua posição. A defesa do equilíbrio como meta desejável de governo e pilar de sustentação do projeto nacional de desenvolvimento que ele propõe nada tem tributária ao receituário da “austeridade” neoliberal. Em rigor, ela vai exatamente no sentido oposto: trata-se de medida que visa escapar da subordinação aos rentistas credores da dívida pública. Ela parte da difícil constatação de que, dada a posição atual do Brasil, país sem soberania efetiva até mesmo para administrar como bem entender a sua moeda, não haverá nenhum projeto nacional possível sustentável dependente do dinheiro alheio.

Por Daniel S. Kosinski

Doutor em Economia Política Internacional (IE-UFRJ) e diretor do Instituto da
Brasilidade

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